sexta-feira, janeiro 29, 2016

A LAVA JATO NÃO É JUSTIÇA, É GOLPE CONTRA A DEMOCRACIA.

Um país que protege Cunha e persegue Lula é um país doente. Por Paulo Nogueira



Postado em 28 jan 2016
Livre como uma borboleta: Cunha
Livre como uma borboleta: Cunha
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A Lava Jato perdeu o pudor.
O nome Triplo X, referência sibilina ao mítico ‘Triplex do Lula’ é um acinte. Está claro que se trata de erradicar não a corrupção – mas de caçar Lula.
Fosse outro o propósito você não teria um ataque tão sistemático a Lula enquanto um homem como Eduardo Cunha borboleteia, livre para armar as delinquências em que é mestre.
Era mais honesto batizar a operação como Caça Lula.
Os suíços entregaram de bandeja documentos que comprovam corrupção em níveis pavorosos de Cunha. Ele mentiu, sonegou, inventou desculpas aberradoras e usou até a palavra ‘usufrutuário’ para tentar encobrir sua condição de dono de milhões na Suíça.
Não foi apenas isso.
Depoimentos de fontes variadas coincidiram em relatar ameaças de paus mandados de Cunha contra pessoas que pudessem dizer coisas comprometedoras contra ele.
Vídeos mostraram expressões aterrorizadas de delatores ameaçados por homens de Cunha. Parecia coisa de Máfia. Falaram até na família. Em filhos. Disseram que tinham o endereço para a retaliação.
Não foi um depoimento nesse gênero. Foram pelo menos três, dois de delatores e um de um deputado que era um problema para Cunha na Comissão de Ética que o julga.
Que mais queriam? Que um cadáver amanhecesse boiando num rio?
E as trocas de emails com empresas beneficiárias de medidas provisórias?
Com esse conjunto avassalador de evidências, Eduardo Cunha aí está, na presidência da Câmara, ainda no comando de um processo viciadíssimo que pode cassar 54 milhões de votos.
Cadê a Polícia Federal? Cadê Moro? Cadê uma operação realmente para valer para investigar as delinquências conhecidíssimas de Cunha.
Nada. Nada. Nada.
É uma bofetada moral inominável nos brasileiros. É a completa desmoralização da política.
Enquanto a vida é mansa para Cunha, para Lula é uma sucessão infindável de agressões.
Virou piada que até ser amigo de Lula se caracterize como algo capaz de incriminá-lo. Mas coloquemos o adjetivo certo: é uma piada repulsiva.
Um apartamento banal numa praia banal – a cidade plebeia do Guarujá – adquire ares de uma propriedade suntuosa que Lula jamais poderia comprar. É um tríplex, uma palavra feita para impressionar e ludibriar a distinta audiência.
Não interessa se quatro ou cinco palestras de Lula seriam suficientes para comprar o apartamento. Não interessa se ele tem documentos que comprovam que ele não comprou, afinal, o imóvel.
O que importa é enodoar a imagem de Lula. Caracterizá-lo como um corrupto, um ladrão, um monstro de nove dedos. O maior vilão da história do Brasil.
Alguém – PF, Moro, imprensa – deu um passo para saber se a residência de Eduardo Cunha é compatível com seus rendimentos de deputado? Alguém apurou se ele tem condições de bancar uma vida de fausto para a mulher, à base joias e extravagâncias como aulas de tênis no exterior?
Ninguém.
É um país doente aquele que protege Eduardo Cunha e investe selvagemente contra um homem que cometeu o pecado de colocar os excluídos na agenda nacional como nenhum outro desde Getúlio Vargas.
Estamos enfermos – e Moro e sua Lava Jato são sintomas eloquentes dessa nossa deformação moral.
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Paulo Nogueira
Sobre o Autor
O jornalista Paulo Nogueira é fundador e diretor editorial do site de notícias e análises Diário do Centro do Mundo.

domingo, janeiro 17, 2016

A soma de todos os erros

  • Márcio Sotelo Felippe
    Procurador do Estado
Escravos e servos tinham que se ligar necessariamente à terra, que era o meio de produção nuclear nos modos escravista e feudal.
O capitalismo funciona de modo diferente. Pelo contrário, quem vende sua força de trabalho o faz como sujeito de um contrato; portanto, “autônomo”, “livre”. Ele mora onde pode “escolher”. Pela própria natureza do sistema, mora apartado do meio de produção e tem a sagrada liberdade de morar nas ruas, a sagrada liberdade de não ter teto.
O capitalismo também tem a particularidade de tornar supérfluos, e por vezes nocivos -  porque supérfluos costumam criar problemas - parte da força de trabalho. A raiz do moderno Direito Penal está nesta particularidade histórica. Privados da terra no processo de acumulação primitiva do capital, hordas de despossuídos vagavam pelas cidades e campos “perturbando a ordem pública”. O sistema penal foi e é uma das formas de controle dessa massa.
Tudo piora ainda quando ganha relevo o capitalismo parasitário, rentista, sequer vinculado ao processo produtivo, que prescinde do produtor direto. Nutre-se de papéis que fazem circular uma espécie de riqueza que corresponde a nada e prescinde do trabalho e da riqueza real, fazendo crescer o contingente de seres humanos supérfluos.
Uma das consequências desse cenário estamos vendo todos os dias: o fenômeno cada vez mais acentuado da violência do sistema repressivo e um draconiano Direito Penal, com suas hiperpenas e aumento da população encarcerada, mantida em condições absurdamente desumanas. Animais criados para abate, como são mercadorias, recebem melhor tratamento do que presos, que nem são mercadorias e nem as produzem e, portanto, nada valem para o capitalismo. E por isso também se permite à polícia que mate à vontade nas periferias das grandes cidades, preferencialmente jovens e negros.
E assim também o desprezo pelas condições de vida da massa “supérflua”. Como a mão de obra é farta e há sempre um exército de desempregados, aparece a fria racionalidade instrumental do sistema judiciário a serviço do capitalismo. Com a completa indiferença da grande imprensa e das autoridades maiores da República, pequenas autoridades da República não têm qualquer freio moral. São capazes, por exemplo, de desalojar brutalmente milhares de pessoas, famílias, crianças, idosos e doentes, que poderão certamente valer-se do direito que o capitalismo concede a todos de morar onde bem entender.
Pode-se ver no Youtube uma cena que marcará indelevelmente a história do Judiciário no Brasil. No dia seguinte à tragédia do Pinheirinho, a MM. Juíza de São José dos Campos declarou que “a Polícia Militar agiu com honra”. Sempre pensei que a palavra “honra” somente poderia ser utilizada para fatos que pudessem ter um mínimo de valor moral. Engano meu.
Daniel Jonah Goldhagen conta em Os Carrascos Voluntários de Hitler, que discute o papel do povo alemão no Holocausto, um episódio ilustrativo da incapacidade de pensar moralmente, tratando seres humanos como supérfluos. Um capitão da SS que comandava uma companhia empenhada no massacre de judeus na Polônia certa vez descumpriu uma ordem hierárquica alegando objeção moral. A ordem determinava que os soldados assinassem uma declaração comprometendo-se a não saquear. O capitão justificou-se dizendo-se ofendido em seu “senso de honra”. Não ofendia o conceito de honra do oficial nazista exterminar como baratas seres humanos. Ofendia supor que seus comandados precisavam de uma ordem para não saquear, já que eles, afirmou o capitão, aderiam às normas de moralidade e conduta alemãs derivadas da “livre vontade” e não pela “ânsia de benefícios ou o temor da punição”. Percebe-se que o capitão em algum momento de sua vida leu Kant (suas palavras são muito semelhantes a algumas passagens da Fundamentação da Metafísica dos Costumes) mas não foi capaz entender que livre vontade e não agir somente por receio da punição estão indissociavelmente vinculados ao conceito de dignidade humana em Kant. E disto também se depreende, a partir do que o capitão afirmava ser o senso de honra de seus comandados, que os soldados da SS não eram saqueadores porque tinham a livre vontade de não saquear e, logo, eram também assassinos por livre vontade e não porque recebiam ordens.
Episódios como esse demonstram a necessidade de discutir o papel dos “pequenos” perpetradores (entre aspas, porque as consequências são tremendas) do mal social. Eles se caracterizam, em geral, pela incapacidade de formular conceitos morais que não sejam absurdamente rasos, inacreditavelmente superficiais. E são capazes de transformar conceitos filosóficos, que sempre implicam o pensar e a razão, ou seja, a crítica incessante e necessariamente incompleta que caracteriza o exercício da razão, em um conjunto pétreo de regras que dispensam juízos profundos. Lembre-se, a propósito disso, a declaração de Eichmann em Jerusalém de que agiu – também “kantianamente” – de acordo com o imperativo categórico.
Com essa leveza pueril e superficialidade, a mesma, aliás, do Pinheirinho, estivemos a ponto de assistir a uma inominável tragédia, a desocupação de Vila Soma, no município de Sumaré. Uma área desocupada há 20 anos tornou-se moradia de cerca de 9 mil pessoas porque o Estado brasileiro descumpre seu papel social e desconsidera o direito fundamental à habitação. Como se trata da moradia de 9 mil supérfluos, tudo é possível. Além dos proprietários, o Ministério Público também pediu a retirada dos moradores alegando lesão a interesse urbanístico. Compete ao Ministério Público, nos termos do art. 127 da Constituição Federal, a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis. No conceito do nobre representante do MP o interesse social urbanístico não pode esperar e prevalece imediata e incondicionalmente sobre o interesse social de não deixar desabrigados 9 mil homens, mulheres, crianças e idosos cujos direitos ele deveria proteger.
Uma tal ignomínia somente é possível porque há uma rede social de pequenos perpetradores incapazes de formular juízos morais menos rasos. O que exerce um papel funcional no capitalismo, que precisa do mal social para se manter e se reproduzir. Hannah Arendt dizia que não se deve falar em mal radical (radical significa ir às raízes) porque o mal é superficial. Ir às raízes das coisas é pensar. O mal se nutre da renúncia ou ausência da razão. O capitalismo funciona porque isto opera.
Não assistiremos, pelo menos neste domingo próximo, à tragédia de Vila Soma graças à coragem de dois juízes, Marcelo Semer e Ricardo Lewandowsky. O primeiro, relator de recursos do caso no TJSP, proferiu decisões determinadas pelo sentido de humanidade e pela racionalidade social e moral. O segundo teve a sensibilidade (habitual em sua magistratura no STF) de suspender, dando efeito suspensivo a um recurso, a tragédia anunciada.
Dois juízes que conseguiram, neste caso, evitar o resultado da soma de todos os erros. O que há de moral e racional na sociedade brasileira os agradece e os honra.

Marcio Sotelo Felippe é pós-graduado em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Universidade de São Paulo. Procurador do Estado, exerceu o cargo de Procurador-Geral do Estado de 1995 a 2000. Membro da Comissão da Verdade da OAB Federal.
Junto a Rubens Casara, Marcelo Semer, Patrick Mariano e Giane Ambrósio Álvares participa da coluna Contra Correntes, que escreve todo sábado para o Justificando.

Foto de Moradores da Vila Soma: Rovena Rosa/Agência Brasil