terça-feira, abril 10, 2012

Queremos guerra e tem de ser agora

6/4/2012, Pepe Escobar, Asia Times Online
http://www.atimes.com/atimes/Middle_East/ND06Ak03.html

Era tarde da noite, em algum ponto sobre a Sibéria, num voo de Moscou a Pequim (BRIC a BRIC?), quando a ideia surgiu-me como um raio e começou a ganhar corpo.

O que diabos, há de errado com aqueles árabes?

Talvez tenha sido o efeito narcotizante daquele eternamente sinistro Terminal F do aeroporto de Sheremetyevo – saído diretamente de um gulag de Brejnev. Talvez, a ansiedade, querendo descobrir mais sobre as manobras navais conjuntas Rússia-China, marcadas para o final de abril.

Ou foi só mais um caso de “você pode tirar o cara de dentro do Oriente Médio, mas você não pode tirar o Oriente Médio de dentro do cara.”

Com amigos como esses...
Teve tudo a ver com o encontro daqueles “Amigos da Síria” (os doidos por guerra?), em Istanbul. Imaginem o ministro de Relações Exteriores da Arábia Saudita, Saud al-Faisal – que parece ter um dom especial para aquecer os instintos belicosos da secretária de Estado dos EUA Hillary Clinton –, argumentando fervorosamente que a Casa de Saud, aqueles píncaros da democratização – teriam “um dever” de armar a oposição síria “revolucionária”.

E imaginem al-Faisal ordenando imediato cessar-fogo ao governo de Bashar al-Assad, culpado – segundo a Casa de Saud – não só por cruel repressão, mas também por crimes contra a humanidade.

Não, não é cena imaginada por Monty Python.

Para garantir que ordenhava a vaca certa, al-Faisal disse também que o Clube Contrarrevolucionário do Golfo, também conhecido como Conselho de Cooperação do Golfo (CCG), quer meter-se ainda mais na mesma cama, com os EUA. Tradução, se necessária: a equipe que leva a griffe EUA-CCG, como se viu pelo plano para armar até os dentes os ‘rebeldes’ sírios, quer ir para o corpo-a-corpo com o Irã.

Para ambos (a Casa de Saud e o Qatar; os demais só fazem figuração no CCG), não se trata da Síria, na Síria: a coisa ali sempre foi o Irã.

Tem a ver especialmente com a promessa dos sauditas, de inundar o mercado global com produção extra de petróleo, da capacidade ociosa de extração que os sauditas dizem ter, e que qualquer especialista de petróleo que se dê ao respeito sabe que os sauditas não têm (ou que, se têm, não usarão); afinal, a Casa de Saud precisa muito de petróleo a preços altíssimos, para subornar a população da província do leste, e impedir que avancem, naquelas ideias alucinadas de Primaveras Árabes.

Clinton obteve a promessa da Casa de Saud em pessoa, antes de pousar em Istanbul. O presente-retribuição de Washington foi presente à moda Pentágono: o Conselho de Cooperação do Golfo passará em breve a ser protegido do “demônio” iraniano, mediante um escudo de mísseis fornecido pelos EUA. Isso implica que se pode descartar qualquer ataque ao Irã em 2012 – mas com certeza estará “sobre a mesa” em 2013.

Nações asiáticas – especialmente os países BRICS China e Índia – continuarão a comprar petróleo do Irã; problema é, só, o que farão os poodles europeus. Outros problemas reais são os curdos do norte do Iraque, que estão tirando seu petróleo do mercado até que Bagdá pague a parte que ficou acertado que pagaria. E lá estão os 400 mil barris/dia da Síria, desperdiçados nos últimos meses.

Mesmo assim, os sauditas continuarão a brincar nesse faz-de-conta-que-temos-petróleo, como presente oferecido a Washington – e em troca os EUA pressionam as economias dos poodles europeus servis e alguns asiáticos muito desconfiados, insistindo em que não teriam qualquer razão para continuar comprando petróleo iraniano.

Pois foi quando, nessa confusão em Istanbul, o primeiro-ministro do Iraque, Nuri al-Maliki – cujo poder é hoje consequência direta de os EUA terem invadido e destruído o Iraque – entrou em cena e provocou um terremoto.

Eis o que disse, palavras dele:

“Rejeitamos qualquer arranjo para armar [os rebeldes sírios] e todo o processo para derrubar o regime [Assad], porque isso levará a uma crise muito maior em toda a região (...) A posição desses dois estados [Qatar e Arábia Saudita] é estranhíssima (...). Querem meios para mandar mais armas para lá, em vez de tentar apagar o fogo. Então, que ouçam nossa voz: o Iraque é contra armar os rebeldes e contra qualquer tipo de intervenção estrangeira (...) Somos contra a interferência de alguns países em assuntos internos da Síria. Esses países que agora estão interferindo em assuntos internos da Síria logo estarão interferindo em assuntos internos de qualquer país (...). Já tentam derrubar o governo de Assad há um ano, e o governo não caiu. E não cairá. E por que deveria cair?"[1]

Maliki sabe muito bem que o processo, já em andamento e de fato já em escalada, de armar os sunitas sírios – muitos são salafistas, do tipo jihadistas – fatalmente respingará sobre o próprio Iraque, e ameaça o governo de maioria xiita. E, isso, ainda sem considerar que seu governo apoia a íntima relação que liga Irã e Síria.

Maliki, vale lembrar, voltou ao poder no outono de 2010, porque Teerã operou habilmente para assegurar que os sadristas o apoiassem. Para aumentar a fúria de Maliki, o Qatar tem-se recusado a extraditar o vice-presidente do Iraque, Tareq al-Hashemi, acusado de chefiar um golpe de estado pró-sunitas em Bagdá.

Como era verde o meu Jihad-vale...
O que quer dizer que Washington está agora embarcando alegremente num remix da jihad afegã dos anos 1980s – a qual, como sabem todos os grãos de areia, do Hindu Kush à Mesopotâmia –, levou ao surgimento da Al-Qaeda, entidade fantasmagórica, e ao subsequente Transformer, a “guerra ao terror”.

A Casa de Saud e o Qatar institucionalizaram aquela turba conhecida como Exército Sírio Livre, como griffe mercenária: estão já na folha de pagamento, ao custo de $100 milhões, só até agora. A democracia não é mesmo linda – quando as monarquias do Golfo aliadas dos EUA, só com uns trocados, conseguem comprar um exército de mercenários? Não é fantástico ser revolucionário, com salário garantido?

Sem perder tempo, Washington também já criou sua própria linha de pagamento, para garantir assistência “humanitária” aos sírios, e ajuda “não letal” aos “rebeldes”. Por “não letal” entende-se um equipamento de comunicações por satélite adaptado para combate, além de óculos para visão noturna. A versão Clinton-sedosa diz que o equipamento permitirá que os “rebeldes” consigam “escapar” dos ataques do governo sírio. E não diz que terão acesso à inteligência que os EUA oferecem, graças a um enxame de aviões-robôs, drones, que já congestionam os céus da Síria.

Maliki está vendo claramente o que qualquer um vê escrito no muro (sunita). A Casa de Saud invadiu o Bahrain de maioria sunita, para proteger a dinastia sunita al-Khalifa no poder, extremamente impopular – “primos” dos sauditas. Maliki sabe que Síria pós-Assad significaria os sunitas da Fraternidade Muçulmana síria no poder – com salpicos de jihadistas salafistas. Em seu pior pesadelo, Maliki vê esse possível futuro distópico como remix & esteroides de uma al-Qaeda no Iraque.

Eis aí no que deu aqueles “Amigos da Síria” from Istanbul: a despudorada legitimação, por árabes aliados aos EUA, de uma guerra civil, em mais um país árabe. As vítimas, dessa vez, serão os sírios comuns apanhados no fogo cruzado.

Essa guerrificação e farta distribuição de armas promovida por EUA-CCG liquefaz completamente o plano de paz, de seis pontos, do enviado da ONU à Síria, o ex-secretário geral Kofi Annan. O plano propõe um cessar-fogo; que o governo sírio faça cessar “o movimento de tropas” e “inicie a retirada das concentrações militares”; e o início de negociações para um acordo político.

Não haverá cessar-fogo. O governo Assad aceitou o plano. Os “rebeldes” hiper armados rejeitaram. Imaginem se o governo sírio iniciará alguma “retirada de concentrações militares”, enquanto “rebeldes” hiper armados e mercenários de todos os tipos (vindos da Líbia, do Líbano e do Iraque) continuam a matar e torturar, mantendo fogo de barreira de dispositivos explosivos improvisados.


Cheguei a Pequim, querendo saber mais sobre os próximos exercícios navais conjuntos de China e Rússia, no Mar Amarelo. Em vez disso, fui surpreendido por coluna assinada por Henry Kissinger publicada no Washington Post[2] [e, é claro, também, imediatamente, n’O Estado de S.Paulo[3] (NTs)].

A Primavera Árabe é apresentada como revolução regional, de jovens, em nome dos princípios liberais democráticos. Mas não na Líbia, onde essas forças não governam; a Líbia, praticamente, já nem é Estado. Tampouco o Egito, onde os eleitores são, na maioria, (e talvez para sempre) islâmicos. E nada leva a crer que os democratas predominem, na oposição síria.

O consenso da Liga Árabe sobre a Síria não foi modelado por países conhecidos pela prática ou defesa da democracia. Em vez disso, o que se vê na Síria é o conflito milenar entre xiitas e sunitas, com os sunitas exigindo o poder sobre uma minoria sunita. É exatamente o mesmo que acontece onde há tantos grupos minoritários, como drusos, curdos e cristãos: todos inquietos ante a mudança de regime na Síria. (Nisso, pelo menos, Dr. K, especialista em China, acertou – e concorda integralmente com Maliki, nada mais nada menos).

Um vasto exército mercenário pago por árabes autocratas para derrubar governo árabe é posto como pura e simplesmente “mudança de regime” – apesar de toda a retórica norte-americana sobre “democracia” e “liberdade”.

Kissinger volta, nada mais nada menos, que à velha conversa do dividir para governar: e obra para jogar sunitas contra xiitas.

E foi quando meu divino pato laqueado revelou que o Dr. K, esse campeão da realpolitik, não está encontrando muito eco em Washington, nos últimos tempos.

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