quinta-feira, janeiro 12, 2012

Afeganistão-2012

Falta muito para a paz, além de “negociar com os Talibã”
11/1/2011, M K Bhadrakumar, Asia Times Online
http://www.atimes.com/atimes/South_Asia/NA12Df01.html

O zum-zum sobre “discussões secretas” entre os EUA e representantes dos Talibãs amainou; mais uma vez, o que realmente interessa vai aos poucos sumindo do campo de visão do grande público.

Mas fato é que a mídia iraniana insiste que três comandantes Talibã de alto escalão foram libertados – Mullah Khairkhawa, ex-ministro do Interior; Mullah Noorullah Noori, ex-governador; e Mullah Fazl[1] Akhund, comandante do estado-maior do exército, no governo dos Talibã – em troca de um soldado norte-americano capturado pelos Talibã.

Parece que os diplomatas dos EUA puseram o carro à frente dos bois, na ânsia de terem algum ‘processo de paz’ em andamento antes da próxima reunião dos países membros da Organização do Tratado do Atlântico Norte, OTAN, em Chicago, em maio próximo. Parece que cometeram pelo menos dois erros gravíssimos. Primeiro, subestimaram as compulsões políticas do presidente Hamid Karzai do Afeganistão. Segundo, os EUA deram por certo que os grupos anti-Talibã da Aliança do Norte[2] alinhar-se-iam sem discussão, ‘porque’ vários deles foram cooptados em diferentes momentos dos dez anos de guerra e por isso manter-se-iam alinhados para sempre.

Karzai apareceu com uma surpresa: insistiu que as conversações sejam conduzidas “por afegãos” (o que, traduzido, significa que reivindica para si mesmo papel de destaque nas negociações). Não é a primeira vez que faz exigência desse tipo, mas, dessa vez, não há o que o demova. Karzai sabe que a opinião regional não aprova, de modo algum, qualquer tipo de processo de paz conduzido pelos EUA; e, se estiver sentado ao volante, há menos riscos de ser jogado para fora do carro em movimento.

Karzai também está exigindo dos EUA que todos os Talibã hoje presos na prisão norte-americana da Baía de Guantánamo, na ilha de Cuba, sejam entregues à custódia do Afeganistão, não do Qatar (os Talibã já teriam escolhido o Qatar). E trouxe à discussão outra questão difícil: se os EUA continuarão ou não no controle da base aérea Bagram, próxima a Kabul, que funciona como centro de detenção.

Na 2ª-feira, Karzai elevou ainda mais a aposta: exigiu que os Talibã aceitem um cessar-fogo, antes do início de qualquer negociação formal de paz. Nas palavras de seu porta-voz, Emal Faizi: “Quando as conversações começarem deverá haver um cessar-fogo e toda a violência contra o povo afegão deverá terminar”. Faizi disse também que é prematuro enviar delegação de Kabul ao Qatar, para conversações. “O governo não tem planos imediatos para essa viagem.”

O endurecimento da posição de Karzai também tem de ser entendido no contexto da agitação que está aumentando entre os grupos da Aliança do Norte.

Na 2ª-feira, em Berlim, líderes da Aliança manifestaram-se contra qualquer discussão secreta entre o governo Obama e os Talibã. Esses líderes – Ahmed Zia Massoud, irmão do falecido Ahmad Shah Massoud e ex-vice presidente do governo de Karzai; general Abdul Rashid Dostum, líder uzbeque que comanda os Jumbish no norte do Afeganistão; Haji Mohammad Mohaqiq, líder xiita hazara de Mazar-i-Sharif, comandante dos Hezb-e-Wahdat; e Amrullah Saleh, ex-chefe da inteligência afegã – reuniram-se num encontro com quatro deputados norte-americanos (Dona Rohrabacher, Loretta Sanchez, Louie Gohmert e Steve King, todos Republicanos, exceto King) em Berlim, encontro que se prolongou por todo o fim de semana; na 2ª-feira, lançaram uma declaração conjunta[3].

É a primeira vez que lideranças das comunidades tadjique, uzbeque e hazara reúnem-se numa mesma linha pública de ação, todos em oposição à estratégia de paz que os EUA conceberam, e apresentam projeto alternativo de acordo pan-afegão. Essencialmente, estamos assistindo aí ao renascimento da Aliança do Norte, como entidade política.

A declaração conjunta ataca a estrutura de poder encabeçada por Karzai (disfuncional, excessivamente centralizada e cada dia mais corrupta); e afirma que o Afeganistão precisa, em primeiro lugar, de forma de governo parlamentar inclusiva, “em vez de um sistema presidencial em que tudo está centrado no presidente”2; e que represente efetivamente todas as etnias e interesses regionais.

Querem reforma do sistema eleitoral do país, do atual sistema de votação única, para “alguma variante que todo o país aceite de sistema representativo proporcional”; eleição direta de governadores e conselhos provinciais, com delegação de poderes para criar orçamentos, arrecadar impostos e supervisionar a administração, serviços sociais e as forças de polícia locais.

Mas, de longe, o aspecto mais importante é que a declaração questiona frontalmente o locus standi dos EUA para iniciar conversações de paz com os Talibã. Diz a declaração:
Acreditamos firmemente que qualquer negociação [só] pode ser aceitável, e portanto efetiva, se todas as partes em conflito forem incluídas no processo. A forma que as discussões têm hoje é viciada, dado que exclui os anti-Talibã afegãos. É preciso não esquecer que os extremistas Talibã e seus apoiadores da al-Qaeda foram derrotados [em 2001] por afegãos que resistiram ao extremismo, e que contaram com um mínimo apoio dos EUA e da comunidade internacional, exclusivamente na forma de agentes infiltrados na resistência afegã. As negociações hoje em curso com os Talibã não consideram os riscos, os sacrifícios e os legítimos interesses de afegãos, cuja resistência pôs fim à brutal opressão de todos os afegãos.
Com o objetivo de apressar a retirada das forças internacionais, acreditamos que é essencial fortalecer instituições regionais e nacionais inclusivas, que representem as preocupações de todas as comunidades afegãs. [Negritos meus.]
Desafio a Obama
A declaração da Aliança do Norte desafia o monopólio que os EUA tentam ter na resolução do conflito; desafia também a avaliação unilateralista de Washington, segundo a qual os Talibã seriam o único grupo a ser considerado como protagonista no tabuleiro de xadrez afegão, em algum processo de paz.

A clara e completa abordagem que se vê nessa declaração implica tirar o ‘acordo afegão’ da via estreita e clandestina de um compromisso entre EUA, Talibã e Paquistão, para inseri-lo em fórmula clara, transparente, inclusiva, amplamente participativa, que não exclua os interesses de nenhum grupo afegão, que tenha apoio popular, com lideranças locais fortes, eleitas, que tenham legítimos poderes delegados para a governança local.

Em resumo, vê-se aí uma visão do Afeganistão devolvido aos seus traços históricos de sistema federado de governo, sob o qual possa florescer uma sociedade plural, mas com forma representativa de governo como democracia moderna. De fato, a declaração da Aliança do Norte implica prontidão para uma reconciliação política com os Talibã, desde que cheguem ao poder pela via eleitoral, não pelo poder das armas que o Paquistão lhes fornece, dentre outros fornecedores.

É claro desafio aos EUA e ao Paquistão, para que façam o que nunca se cansam de pregar, em suas pias homilias.

A estratégia da aliança põe enorme pressão sobre Karzai – que fica preso entre dois grupos em disputa. Os líderes da Aliança do Norte criticam Karzai, que não é aceito, tampouco, pelos Talibã. A posição de Karzai enfraquece, se ele antagonizar os grupos da Aliança do Norte e despertar a hostilidade deles. E Karzai não quer pôr todos os seus ovos na cesta dos norte-americanos, tampouco, porque, a qualquer momento, os EUA podem descobrir que não precisam dele. Karzai precisa de tempo para manobrar e criar uma nova coalizão que fortaleça sua posição.

O que inflou os grupos da Aliança do Norte, no mínimo em parte, é que, apesar do gelo que envolve hoje as relações entre EUA e Paquistão, Washington manteve os militares paquistaneses e o ISI [serviço secreto do Paquistão] na jogada das conversações no Qatar, mas os ignoraram completamente, como protagonistas. Seja como for – e vale a pena anotar desde já – a Aliança do Norte não fez qualquer referência ao Paquistão.

Não surpreendentemente, Islamabad prende a respiração, à espera dos acontecimentos. Nada divulgou sobre a proposta de conversações com os Talibã no Qatar. Simultaneamente, o serviço secreto paquistanês acompanha tudo, e seu chefe, o tenente-general Ahmed Shuja Pasha, até esteve recentemente no Qatar, por uma noite.

O Paquistão gostará de ver que Washington afinal desistiu de impor pré-condições para conversar com os Talibã. Também muito apreciará que altos comandantes Talibã saiam afinal de Guantanamo. O Paquistão não criou qualquer dificuldade quando o ex-comandante mujahideen Gulbuddin Hekmatyar (que vive em Peshawar, no Paquistão) mandou gente a Kabul para sondar funcionários dos EUA e da OTAN e saber se havia lugar previsto para ele na mesa de reunião no Qatar.

Mas o Paquistão não emitirá opinião sobre a possibilidade daquelas conversações; e fará crer que vê o assunto como questão entre Mullah Omar, líder Talibã que vive aquartelado em Quetta, no Paquistão, e os EUA.

E tudo isso está sendo jogado, sobre o pano de fundo das complicadas relações entre EUA e Paquistão. Como se não bastasse, o Talibã não é uno, mas uma imensidão de facções irreconciliáveis. E nem Mullah Omar nem o clã Haqqani comentaram, até agora, a proposta de conversações no Qatar.

O Paquistão pode contar como certeza, com a possibilidade de que o ISI será o único ator capaz de conduzir todas as facções dos Talibã na direção de plataforma unificada para aquelas conversações. E os EUA não têm escolha: terão de bater à porta do ISI, mais dia menos dia e pedir ajuda.

Do ponto de vista dos grupos da Aliança do Norte, a estratégia do Paquistão é esperar que chegue 2014 – prazo final para a retirada das tropas dos EUA –, reagrupar os Talibã e chegar ao poder em Kabul. O impressionante show de unidade que deram agora, em Berlim, sugere que não descartam a possibilidade de que um acordo exclusivo, de EUA-Talibã e Paquistão esteja sendo imposto aos afegãos.

O desafio que os grupos da Aliança do Norte lançam a Barack Obama é que dê ao povo afegão o direito mínimo de ter sua ‘primavera árabe’, de modo que o islamismo possa reconciliar-se com a democracia – na esperança, afinal, de que os EUA estejam ‘do lado certo da história’. Afinal de contas, nem estão pedindo muito!


NOTAS

[1]
Sobre Fazl, ver 4/1/2012, MK Bhadrakumar, “2012: ano dos Talibã”, http://redecastorphoto.blogspot.com/2012/01/2012-ano-dos-taliba.html e 8/1/2012, Pepe Escobar, “O mapa do caminho do impasse no Afeganistão”, em http://redecastorphoto.blogspot.com/2012/01/pepe-escobar-o-mapa-do-caminho-do.html [NTs].
[2] A Aliança do Norte, oficialmente “Frente Islâmica Unida para a Salvação do Afeganistão”, foi organização político-militar criada pelo Estado Islâmico do Afeganistão em 1996, com o fim de unir diversos grupos demográficos afegãos não pashtuns, para lutarem juntos contra os Talibã. A organização apoiou os Estados Unidos e suas forças aliadas a partir de 7 de outubro de 2001 durante a invasão americana [mais sobre isso em BBC, 13/11/2001, em http://news.bbc.co.uk/2/hi/south_asia/1652187.stm (NTs) em inglês].
[3] A íntegra dessa declaração, datada de 9/1/2012, foi distribuída pelo gabinete do Deputado Louie Gohmert (R-Texas) como press-release, sob o título: “Governo Obama traiu aliados da Aliança do Norte, no Afeganistão” (em http://gohmert.house.gov/News/DocumentSingle.aspx?DocumentID=274224, em inglês) [NTs].