quinta-feira, julho 28, 2011

O que acontecerá depois de Gaddafi?

26/7/2011, Yevgeny Primakov [entrevista a Matthias Schepp e Bernhard Zand] Spiegel http://www.spiegel.de/international/world/0,1518,776509,00.html
Yevgeny Primakov , 81, é ex-primeiro-ministro,
ministro da Relações Exteriores e Chefe do Serviço de Inteligência da Rússia

Spiegel é uma revista (não)VEJA em alemão – o que se percebe pelo tom arrogante metido a besta, dos jornalistas entrevistadores.
Mas é melhorzinha que a revista (não) VEJA (pior não há, no mundo!).
E o entrevistado é interessante (motivo pelo qual nunca seria entrevistado pela revista (não)VEJA).

Spiegel: Sr. Primakov, qual o país árabe que atualmente mais o preocupa?

PRIMAKOV: Líbia. A tentativa da coalizão ocidental de derrubar a bombas o regime de Gaddafi não foi autorizada pela Resolução n. 1.973 da ONU – e foi mal concebida, em termos estratégicos. É mais que hora de encontrarmos uma solução política para a crise da Líbia.

Spiegel: O ministro Sergey Lavrov, das Relações Exteriores da Rússia, reuniu-se com o ministro líbio das Relações Exteriores, semana passada, em Moscou. E diplomatas franceses e americanos também já iniciaram contatos com representantes do governo de Gaddafi.

PRIMAKOV: A verdade é que a OTAN meteu-se num beco sem saída. Ninguém dá sinais de interesse em propor as questões realmente importantes, como, dentre outras: Para onde essa guerra os está levando? E o que acontecerá depois de Gaddafi? Será que todos já esquecemos o que houve no Iraque? Oito anos de caos! Bombardeios diários, mortes diárias. Será que alguém ainda acredita que isso seja “estabilidade”?

Spiegel: O senhor esteve várias vezes com o coronel Gaddafi. Como devemos tratá-lo?

PRIMAKOV: Não sou dos que idealiza o coronel Gaddafi. Longe disso. Há quarenta anos, quando derrubou o rei Idris, Gaddafi tinha contato com o presidente Gamal Abdel Nasser do Egito. Gaddafi supunha que, se bem pago, Nasser o ajudaria a conseguir que a União Soviética lhe vendesse uma bomba atômica. Gaddafi pensava exatamente como um beduíno.

Spiegel: E hoje?

PRIMAKOV: Está mais velho e muito mais experiente, mas a Líbia ainda é uma ditadura – embora seja apoiada por parte da população. Muita gente oferece-se para proteger, como escudos humanos, os locais onde Gaddafi pernoita. São voluntários.

Spiegel: O que o senhor propõe, como solução para a crise da Líbia?

PRIMAKOV: Não se pode nem falar de missão de mediação, porque já está decidido que tentarão levar Gaddafi a julgamento na Corte Internacional de Justiça em Haia. Mas a Rússia não quer que a Líbia naufrague no caos. A única possibilidade é tentar uma reaproximação entre os dois lados que estão em conflito.

Spiegel: Como uma mediação dos russos poderia ser bem sucedida?

PRIMAKOV: Porque tentamos manter uma posição de equilíbrio entre os dois lados. A OTAN está, de fato, alinhada a um dos lados, nessa guerra civil. Nessas circunstâncias, a OTAN nada poder mediar.

Spiegel: Pouco depois de o primeiro-ministro russo Vladimir Putin criticar as resoluções sobre a Líbia como “convocação para uma Cruzada”, o presidente Dmitry Medvedev declarou que aquelas palavras seriam “inaceitáveis”. Há diferentes vozes em Moscou?

PRIMAKOV: Putin não quis vetar a resolução da ONU. E Medvedev, como ele, disse que a resolução não autorizou os ataques da OTAN. As posições de ambos são praticamente iguais; as diferenças são mínimas.

Spiegel: Afinal, a Rússia absteve-se de votar, como Brasil, China, Alemanha e Índia. O senhor acredita que a Rússia deveria ter vetado as resoluções da ONU?

PRIMAKOV: Não. Se as tropas líbias continuassem a atacar por mais dois, três dias, Gaddafi teria tomado Benghazi. Haveria um banho de sangue. A Resolução n. 1.973 é, sem dúvida, excessivamente vaga; mas uma zona aérea de exclusão significa exclusivamente destruir ou incapacitar toda a força área e as defesas aéreas de Gaddafi. Mas a OTAN pôs-se a bombardear grupos de soldados, refinarias de petróleo, os palácios de Gaddafi e até civis. Não há qualquer tipo de autorização legal para esses ataques. (...)

Spiegel: O senhor interpreta a abstenção, no caso da Alemanha, como dar as costas ao ocidente?

PRIMAKOV: Sou realista. As relações entre a Alemanha e os EUA permanecem intactas. Não suponha que os russos nos pomos a festejar, no instante em que Alemanha e EUA discordam. Não sejamos primitivos.

Spiegel: De qualquer modo, o senhor não parece considerar excelentes as políticas da OTAN para o Oriente Médio.

PRIMAKOV: Vejo uma tendência explosiva: a OTAN deseja deslocar e substituir a ONU. Sempre apoiei que a ONU pudesse delegar missões de paz, para alianças regionais. Mas a OTAN age independentemente, não se subordina à ONU – e age em todo o planeta.

Spiegel: Em que diferem as políticas russas para o Oriente Médio e as políticas ocidentais?

PRIMAKOV: A principal diferença é que estamos convencidos de que é impossível impor decisões a estados soberanos. Tampouco gostamos do que está acontecendo no Oriente Médio. Mas não acreditamos que alguém consiga resolver com bombas, seus problemas políticos. Os russos conhecemos e entendemos o Oriente Médio melhor que muitos países ocidentais. Sabemos que é indispensável considerar a história, as mentalidades, as tradições. Não acredito que alguma democracia baseada em modelo europeu seja viável nos países da Primavera Árabe.

Spiegel: O senhor acha que uma “democracia guiada” pelo modelo russo funcionaria melhor no Oriente Médio?

PRIMAKOV: Em geral sou contra prescrições e recomendações. Os países árabes têm de decidir, eles mesmos, como desejam ser governados.

Spiegel: Os russos previram os levantes populares no mundo árabe?

PRIMAKOV: Não. Como o ocidente, supusemos que só os movimentos islâmicos conseguiriam levar ao colapso os regimes autoritários pós-coloniais. Agora, vemos que há outras forças também ativas. Subestimamos a influência da globalização e da modernização, especialmente o poder da televisão e da internet. Seja como for, a verdade é que a crise no Oriente Médio tem sida apresentada de modo muito simplório.

Spiegel: O que o senhor quer dizer?

PRIMAKOV: A cobertura pelos jornais e televisão é enviesada e, simultaneamente, exagerada. Por exemplo, alguém viu alguma prova exibida na CNN e na Al-Jazeera, de que Gaddafi estaria cometendo genocídio? Há atrocidades dos dois lados, mas a cobertura de imprensa vária vezes pesou excessivamente a favor de um lado e sempre a favor do mesmo lado.

Spiegel: Por que a Rússia teria direito de criticar as políticas imperiais dos EUA? Se os EUA têm uma base militar no Bahrain, o Kremlin tem uma base militar na Síria...

PRIMAKOV: Há uma sutil diferença. Os 2 mil soldados e policiais sauditas sunitas dos Emirados Árabes que invadiram o Bahrain para sufocar as manifestações populares jamais o fariam sem as bênçãos dos EUA. E os russos em nenhum caso apoiaremos qualquer tipo de intervenção na Síria.

Spiegel: Mas os russos também querem preservar ali o status quo...

PRIMAKOV: Depois da experiência com a Resolução para a Líbia, é recomendável que todos cuidemos de pensar melhor. Ninguém no ocidente, até agora, dedicou-se a saber quem, de fato, está fazendo oposição a Assad. Há, claro, alguns democratas genuínos, mas também há grupos islâmicos e da ‘franquia’ da Al-Qaeda. É difícil saber quem é maioria. A Fraternidade Muçulmana na Síria é diferente da egípcia. No Egito, hoje, os irmãos da Fraternidade Muçulmana já admitem cristãos no partido.

Spiegel: Em 2007, o senhor disse que Assad continuava a ser “homem de profunda visão estratégica”. O senhor mantém, hoje, a mesma avaliação?

PRIMAKOV: Assad é previsível. Sejamos honestos: o ocidente não está, de modo algum, preocupado com alguma democracia. A única coisa que realmente preocupa o ocidente é a proximidade entre a Síria e o Irã. Encontrei-me várias vezes com o pai de Assad, Hafez – que me disse, certa vez, que o que mais desejava evitar, por todos os modos, seria um confronto com os israelenses, no qual a Síria estivesse sozinha. Hoje, o conflito entre Israel e palestinos é que força a Síria a manter-se unida ao Irã.

Spiegel: EUA e todo o ocidente consideram vital a estabilidade da região do Golfo e, especialmente, da Arábia Saudita. O senhor concorda?

PRIMAKOV: Ninguém deseja uma Arábia Saudita instável. Nem nós desejamos, nem o rei Abdullah deseja. Ele rapidamente distribuiu $36 bilhões de dólares [25 bilhões de euros] ao povo, depois do início das revoluções na Tunísia e no Egito. Quer dizer... Se o rei permitir que as mulheres dirijam... logo florescerá ali a mais bela democracia (risos).

Spiegel: O islamismo militante, ou “jihadismo”, teve grande expansão sob autocratas como Nasser, Assad e Saddam Hussein – e todos contaram com o apoio da União Soviética. Que parte cabe a Moscou, da culpa pela atual situação no mundo árabe?

PRIMAKOV: E, do outro lado, o ocidente apoiava os ditadores na Tunísia e no Egito. Que parte cabe ao ocidente, pelo que se vê agora?

Spiegel: O senhor está dizendo que os dois lados são culpados?

PRIMAKOV: Não, tampouco diria isso. Fui das primeiras vozes a reagir contra a ideia, que se ouviu em Moscou, de que o ocidente estaria fomentando as revoluções árabes. Os EUA foram apanhados de surpresa. Afinal, Mubarak foi, por muitos anos, parceiro do ocidente na luta contra o terrorismo.

Spiegel: Será que ultrapassamos a era dos líderes autoritários no Oriente Médio?

PRIMAKOV: Não. Creio que teremos lá governos mais democráticos que antes, mas nos quais ainda haverá traços autoritários.

Spiegel: Hillary Clinton diz que os líderes chineses temem que as revoltas árabes respinguem na China. O Kremlin também está nervoso ante a fúria dos jovens russos?

PRIMAKOV: Temos nossas contradições. Mas os eventos árabes não têm qualquer influência nos processos internos na Rússia. Por mais que respeite Hillary, discordo de seus juízos sobre a China.

Spiegel: O Oriente Médio foi, durante décadas, cenário da Guerra Fria. A China, agora, está assumindo o papel que coube à Rússia, como principal adversário na Região?

PRIMAKOV: A história não se repete, e esse tipo de jogo de soma-zero é coisa do passado. Já não há superpotências.

Spiegel: O senhor está dizendo que a China não será superpotência?

PRIMAKOV: Com certeza não será. A China crescerá, os chineses são ambiciosos. Já é a segunda maior economia do mundo. Mas, hoje, vivemos em mundo multipolar, com relações difíceis entre os pólos.

Spiegel: Que papel a Rússia desempenhará?

PRIMAKOV: Seremos um pólo, entre vários outros. E nossa força dependerá de conseguirmos, ou não, modernizar nossa economia.