terça-feira, junho 28, 2011

O Irã coordena o novo eixo Af-Pak

28/6/2011, M K Bhadrakumar, Asia Times Onlinehttp://www.atimes.com/atimes/Middle_East/MF28Ak02.html
A participação dos presidentes do Paquistão e Afeganistão na conferência internacional sobre terrorismo realizada em Teerã durante o final de semana marca importante vitória política e diplomática do Irã, na atual conjuntura da política regional. O Líder Supremo do Irã, aiatolá Seyed Ali Khamenei recebeu os dois presidentes, do Paquistão e do Afeganistão, Asif Ali Zardari e Hamid Karzai.

Um dos principais focos da conferência foi demarcar com clareza que os EUA têm usado o terrorismo internacional como pretexto para intervenção militar no Afeganistão e no Oriente Médio, e para interferir nos assuntos internos de países da região. A mensagem de Khamenei à conferência, em resumo, pôs em pauta “os planos das potências satânicas do mundo, que usam o terrorismo como instrumento de suas políticas e planejam assim alcançar seus objetivos ilegítimos”.

Khamenei denunciou as finanças e os grupos terroristas armados norte-americanos na região e – muito interessante! – referiu-se explicitamente aos “crimes” cometidos pelo grupo Blackwater (Xe Services), que dá assistência a “grupos terroristas” no Paquistão, como “parte da vergonhosa e imperdoável lista de atos de terrorismo praticados pelos norte-americanos”.

Expressando solidariedade às crescentes críticas que Islamabad e Kabul têm feito contra os excessos das operações militares dos EUA no AfPak, Khamenei acrescentou: “Os ataques mortíferos de aviões-robôs não tripulados [drones] contra famílias desarmadas e indefesas nas vilas [do Paquistão] e nas áreas mais carentes do Afeganistão têm, com inadmissível frequência, convertido cerimônias de casamento, em funerais.” E disse Khamenei, em ataque demolidor contra as políticas dos EUA para a região:
“Com tais ações, é vergonhoso [para os EUA] apresentarem-se como líderes da luta contra o terrorismo (...). Do ponto de vista dos políticos da potência hoje dominante [EUA], tudo que ameace seus interesses ilegítimos é definido como terrorismo. Os norte-americanos definem como terrorismo todas as lutas que se fazem legitimamente contra forças de ocupação e forças de intervenção.”
Zardari destacou, na conferência, que o Paquistão sofreu terrivelmente durante toda a década de guerra que os EUA comandaram no Afeganistão. Disse que mais de 5.000 agentes da segurança do Paquistão foram assassinados. E que estima em cerca de 37 bilhões de dólares os prejuízos que os bombardeios provocaram na economia do Paquistão. Zardari destacou a necessidade “vital de uma campanha coletiva, de todos os estados da região que são alvos da ‘guerra ao terror’”.
Interesses de segurança que se superpõem
Karzai, por sua vez, disse que “é impossível combater o terrorismo exclusivamente por meios militares”. Conclamou à unidade, a que os países da região adotem posições firmes e “ações de cooperação coletiva, que reúnam os estados árabes” na luta contra o terrorismo.

Na véspera da conferência, Zardari e Karzai tiveram reunião tripartite com o presidente do Irã Mahmud Ahmadinejad, o qual, outra vez, falou da urgente necessidade de “cooperação estreita entre os países da região” para encaminhar soluções de “paz e segurança no Oriente Médio”. Declaração distribuída pelo gabinete do presidente Ahmadinejad dizia que “[Irã, Paquistão e Afeganistão] prometeram expandir a cooperação em áreas políticas, de segurança e econômicas; e combater o terrorismo e as intervenções militares.”

Do ponto de vista do Irã, um objetivo principal foi construir pensamento comum com Paquistão e Afeganistão, no sentido de que a permanência de forças dos EUA e da OTAN no Afeganistão tem impacto adverso sobre os interesses dos três países e trabalha contra a segurança e a estabilidade na região. Foi exatamente o que o Irã obteve, da reunião entre Khamenei, Zardari e Karzai.

Khamenei procurou “expandir amplamente os laços” entre Irã e Paquistão e alertou Zardari de que “Washington está tentando semear o dissenso no Paquistão, porque a divisão do Paquistão serve aos interesses ilegítimos dos EUA”. Manifestou sua satisfação por o povo paquistanês já ter percebido claramente “a intenção perversa” dos EUA e estar resistindo aos “golpes a favor de os EUA controlarem o país”.

A fala de Khamenei ultrapassou o que Ahmadinejad já dissera sobre “haver provas específicas” de que os EUA conspiram para confiscar o arsenal nuclear do Paquistão. Khamenei deu a impressão de estar sugerindo que os EUA têm plano para desestabilizar o Paquistão; para enfraquecer o estado; e para derrotar a decisão de resistir ao domínio norte-americano; além de comprometer a capacidade de o Paquistão vir a desempenhar papel efetivo na região.

Claramente, as tensões aumentaram nos últimos tempos entre EUA e Paquistão – circunstância que o Irã está explorando, ao encaminhar a mudança de tom. É a primeira vez que se ouve esse tipo de manifestação, do alto nível de Khamenei.

A delegação do Paquistão incluiu, além do presidente Zardari, também o ministro do Interior, Rehman Malik, o que sugere que o Paquistão espera que o Irã partilhe suas reflexões sobre implicações das políticas dos EUA para a região.

Malik manteve importante encontro separado com o ministro do Interior do Irã, Mostafa Mohammad-Najjar, ex-ministro de Defesa e membro do Corpo Revolucionário dos Guardas Islâmicos [ing. Islamic Revolutionary Guards Corps]. O relatório iraniano dessa reunião sugere que tenham sido discutidas, principalmente, as atividades do grupo terrorista Jundallah, que opera fora do Paquistão, na província do Sistão-Baloquistão, na fronteira leste do Irã.

“Discutimos meios para colaborarmos na luta contra terroristas e extremistas que usam solo paquistanês para ações contra os interesses do Irã” – disse Mohammad-Najjar. A observar, que Teerã está demarcando clara diferença entre o grupo Jundallah e o estado paquistanês (antes houve comentários de que o grupo contaria com o apoio do Paquistão). Não se sabe ainda se Malik (que também já presidiu a Agência de Investigação Federal do Paquistão) chegou a reunir-se com o poderoso ministro da Inteligência do Irã, Heydar Moslehi.

Na reunião com Karzai, Khamenei atacou frontalmente os planos dos EUA de estabelecer bases militares no Afeganistão. “Os norte-americanos só pensam em fixar bases militares permanentes no Afeganistão, o que é muito perigoso porque, enquanto houver soldados dos EUA no Afeganistão, não haverá segurança real para ninguém. O povo afegão sofre com a presença de soldados norte-americanos em seu país e essa presença causa dor ao povo de toda a região” – disse Khamenei.

A reunião com Karzai aconteceu dois dias depois de o presidente Barack Obama dos EUA ter anunciado redução do número de soldados no Afeganistão. Khamenei disse a Karzai que o que interessa ao Afeganistão e à região é a rápida retirada dos soldados norte-americanos. E que confia que o Afeganistão tenha plena capacidade para “controlar seus próprios negócios e definir o próprio destino”.

Tudo indica que os iranianos concluíram que ainda é possível forçar os EUA a desistir dos planos iniciais para instalar bases militares no Afeganistão, graças a uma combinação de circunstâncias – a oposição total dos Talibã às bases militares dos EUA; a crise econômica que se agrava nos EUA; a opinião pública farta de guerras; e a urgência, para os EUA, de conseguirem concentrar-se no Oriente Médio e África.

Enquanto isso, Teerã trabalha para impedir que Karzai ceda aos americanos. O que mais preocupa o Irã são as bases que os EUA planejam instalar em Herat e Shindad, no oeste do Afeganistão, junto à fronteira com o Irã.

Ampla convergência de interesses

A grande questão é se é realmente possível construir um eixo regional com Irã-Paquistão-Afeganistão, para discutir o problema afegão. A resposta mais fácil é que esse eixo tem tanto de aparência quanto de substância; e que a proporção de cada uma dependerá de a situação no Afeganistão – e, portanto, na região – tornar-se mais aguda, ou encaminhar-se para solução pacífica.

No momento presente, os diferentes graus de rejeição que os EUA provocam no Paquistão e no Afeganistão por um lado, e, por outro lado, o impasse até agora insanável entre os EUA e o Irã são fatores que operam a favor da aproximação entre os três países.

Zardari e Karzai, evidentemente, empreenderam a visita a Teerã sabendo perfeitamente que a visita é declarado ato de “desafio estratégico” aos EUA – e, mais importante, que Washington entenderia imediatamente o recado: a “conexão iraniana” está conseguindo encontrar espaço de manobra contra os EUA.

Mas Kabul e Islamabad também têm interesses específicos em forjar melhor entendimento com o Irã. Karzai gostaria de poder contar com todo o apoio que o Irã tenha a oferecer, para prosseguir na via de reconciliação com os Talibã.
Gulbuddin Hekmatyar, líder do Hezb-i-Islami, que está representado no governo de Karzai, viveu exilado no Irã durante cinco anos. E o Irã também tem forte influência sobre inúmeros grupos não-pashtuns que não têm dado sinais de simpatia aos planos de paz de Karzai, de reconciliação com os Talibã.

No pior cenário previsível, o Irã pouco acrescentaria; mas ter o Irã como seu parceiro político sempre aumentará substancialmente o poder de barganha de Karzai face aos EUA (e ao Paquistão).

Obter o apoio do Irã para seu processo de paz, como vizinho mais próximo, é absolutamente indispensável para que Karzai consiga costurar um acordo afegão sustentável. E Teerã, por sua vez, conta com que Karzai jamais esqueça o limite intransponível dos legítimos interesses do Irã no Afeganistão e saiba preservá-los adequadamente.

Até o presente, e apesar da interferência dos EUA, Karzai sempre conseguiu conviver em bons termos com Teerã. Desse ponto de vista, o que Khamenei disse sem meias palavras, diretamente a Karzai, sobre as bases militares dos EUA no Afeganistão, pode significar um pacto.

No passado, os interesses do Irã e do Paquistão no Afeganistão muitas vezes andaram em direções contrárias. Mas muitas coisas mudaram. Para o Paquistão, acossado hoje por apreensões e desconfianças quanto às reais intenções dos EUA, ter o Irã como vizinho amistoso passou a ser ativo criticamente importante.

Ainda mais porque a reação do Irã contra as atividades de espionagem dos EUA dentro do Paquistão sempre será valiosíssima e a solidariedade do Irã ajuda a mitigar a furiosa pressão dos EUA. Do ponto de vista de Teerã, é importante que o Paquistão faça o máximo possível para bloquear a atividade do Jundallah, de modo a impedir que outros países usem o grupo como instrumento para desestabilizar o Irã.

O Paquistão, além do mais, é importante país sunita; e ao Irã interessa garantir que não se alinhe à aliança de sunitas liderada pela Arábia Saudita contra o Irã no Oriente Médio. O Irã sempre poderá brandir a amizade com o Paquistão, para denunciar a campanha dos sauditas – que trabalham para fomentar o sectarismo entre xiitas e sunitas, e têm falado de Teerã como líder do campo xiita, para incendiar, contra o Irã, a ira dos sunitas árabes.

Os Talibã sempre foram questão insuperável no relacionamento entre Irã e Paquistão. Já não são. Hoje, na avaliação dos dois países, o ‘problema afegão’ resume-se à presença militar dos EUA no país. Irã e Paquistão concordam com que se deve impedir a presença de longo prazo dos EUA no Afeganistão. E os Talibã tampouco são hoje o que antes foram – como sugerem os contatos diplomáticos entre eles e os EUA (sem conhecimento ou participação de Islamabad).

Hoje, sobretudo, subiu muito o nível de conforto do Irã no que tenha a ver com contar com a boa vontade dos afegãos em acordos com grupos afegãos com os quais o Irã sempre manteve laços históricos e culturais. O estilo pashtun antiquado de dominação no Afeganistão parece ter sido superado por uma espécie de “despertar político” do povo afegão.

O Irã com certeza inclui em seus cálculos políticos a evidência de que a invasão do Afeganistão em 2001 e as consequências que dela advieram reduziram muito a capacidade de o estado paquistanês controlar unilateralmente qualquer acordo afegão. A melhor aposta hoje, dadas as atuais circunstâncias, é Karzai, tanto para o Irã quanto para o Paquistão, para levar avante um processo de paz “liderado pelo Afeganistão”. Todos esses elementos contribuíram para a ampla convergência de interesses entre Irã, Paquistão e Afeganistão.

O modo como essa convergência se manifestará nas próximas semanas e meses pesará muito no curso dos acontecimentos no Afeganistão e terá impacto também, sem dúvida, no processo de reconciliação com os Talibã. O Irã terá sempre o máximo interesse em forjar um eixo regional a partir dessa ampla convergência de interesses e preocupações, e em fazer dele força capaz de modelar, muito mais do que só de catalisar, os eventos futuros. Mas o tango é dança de dois; nesse caso, de três.

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