sexta-feira, junho 17, 2011

Na Kasbah da Tunísia, como na Puerta del Sol de Madri, há uma tentativa de democratizar a vida pública devolvendo a soberania aos desconhecidos.

Esse artigo já apareceu em vários blogs brasileiros, em espanhol.
Agora, por solidariedades que só os comunistas temos costuradas no planeta, recebemos essa tradução, da Galizia.

Aí vai. É melhor que todas as manifestações de culto ingênuo (ou ainda 'publicitário') aos 'jovens', que se leram por aqui. E faz excelente ponte entre as leituras marxistas 'ortodoxas' e as leituras pára-marxistas ou submarxistas que se pretendem de vanguarda, mas que, sem pontes, desmancham-se no ar -- ou viram um puro "brutalismo" que a Internet facilita e que Terry Eagleton diagnosticou bem em "A adolescência como ideologia: a era dos manifestos" (em http://redecastorphoto.blogspot.com/2011/06/era-dos-manifestos-adolescencia-como.html).
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A kasbah de Madrid
21/5/2011, Santiago Alba Rico
Diário Liberdade, Portal anticapitalista da Galiza e países lusófonos (Trad. Lucas Morais) http://www.diarioliberdade.org/index.php?option=com_content&view=article&id=15830:o-qasba-em-madri&catid=99:batalha-de-ideias&Itemid=113
Para nós que estamos seguindo de perto as duas ocupações da Kasbah[1] da Tunísia, é muito difícil não sucumbir à emocionante vertigem de um déjà vu ante as imagens dos jovens que desde a segunda-feira passada dignificam a Puerta del Sol com sua presença: as lonas e cartuns, os papeizinhos com palavras de ordem pregados nos muros, as assembleias permanentes, as comissões de abastecimento, limpeza e comunicação, a obstinação frente a essa chuva torrencial que tantas vezes foi utilizada para justificar a abstenção eleitoral. Não nos enganemos: os protestos na Espanha inscrevem-se na mesma falha tectônica global e prolongam e readaptam o mesmo modelo organizativo inventado na Tunísia e no Egito (e no Barein, Síria, Iêmen etc.). O capitalismo fracassou em tudo, exceto em globalizar as respostas.

“Milhares de jovens espanhóis protestam contra as dificuldades econômicas”, intitula o diário francês Le Monde. É verdade. Também na Tunísia a paralisação, a pobreza e a inflação tiveram muito a ver com o estalar das revoltas. Mas o impressionante não é isto. O impressionante é que em ambos casos os manifestantes tenham reclamado e reclamem “democracia”. No caso da Tunísia e do mundo árabe todos esperavam que seus cidadãos invocassem a sharia – uma variação religiosa da Lei – frente à arbitrariedade e a corrupção; na Espanha, todas as análises apontavam uma penetração crescente do discurso neofascista como resposta à insegurança econômica e social e ao desprestígio da política: a direita conservadora parecia, para um lado e o outro do Mediterrâneo, a única força capaz de canalizar, deformando-o, o mal-estar geral. Mas eis que aqui o que os jovens pedem igualmente, aqui e ali, em Túnis e em Madri, no Cairo e em Barcelona, é “democracia”. Democracia de verdade!

Que a peçam os árabes, parece razoável, pois viviam e vivem todavia submetidos a ditaduras ferozes. Mas que a peçam os espanhóis é mais estranho. Por acaso a Espanha não é já uma democracia?
Não, não é. Na Tunísia, um passinho atrás, ainda se confia em que seja suficiente ter constituição, eleições, parlamento e liberdade de imprensa para que haja democracia. Na Espanha, calçada prontamente com botas de sete léguas, compreendeu-se em um relâmpago que as instituições não bastam se quem governa as vidas dos cidadãos é o mercado, e não o parlamento. Estes jovens sem casa, sem trabalho, sem partido, associaram com intuição certeira as “dificuldades econômicas” ao governo ditatorial, não de uma pessoa concreta, não, mas de uma estrutura econômica que desativa ininterruptamente todos os mecanismos políticos – da jurisdição aos meios de comunicação – que deveriam garantir o jogo democrático. Estes jovens sem futuro souberam desnudar em um golpe a falácia subcutânea que durante décadas sustentou a legitimidade do sistema: a identidade entre democracia e capitalismo. Na Tunísia e no Egito o capitalismo dava varas; na Espanha dava uns poucos doces.

Nenhum regime econômico tratou tanto a juventude como valor mercantil e nenhum depreciou tanto a força real de troca: enquanto a publicidade oferecia vez ou outra a imagem imutável de um desejo sempre enxertado, eternamente jovem, os jovens espanhóis sofriam a paralisia, o trabalho precário, a desqualificação profissional, a exclusão material da vida adulta e só por pouco se livraram das normas socialmente aceitas no consumo pequeno burguês, a perseguição policial. No mundo árabe, para que não reclamassem uma existência digna, os jovens eram golpeados e metidos na prisão; na Europa, para que não reclamem uma existência digna, lhes ofereciam comida lixo, televisão lixo, o tempo lixo dos supermercados e os movimentos. Na Tunísia, os jovens que não podiam ascender a uma vida adulta, eram retidos em seus corpos a golpes; na Espanha, os jovens que não podem comprar sua própria casa nem vender suas competências laborais, ainda podem adquirir tecnologia barata, roupa barata, pizzas baratas. Retida longe dos centros de decisão, depreciada ou superexplorada no mercado de trabalho, moldada por hábitos homogêneos de consumo, a juventude acabou por converter-se (na Europa e no mundo árabe) em uma “classe social” que, por suas próprias características materiais, não reconhece limites de idade.

Mas não nos equivoquemos: se a repressão não funciona, tampouco serve o que Pasolini chamava nos anos 70 de “hedonismo de massas”. Golpes ou doces, os jovens não aceitam que os tratem como crianças; não se deixam amedrontar (”sem medo”, gritam aqui e ali) nem comprar (“não somos mercadorias”).

A Puerta del Sol em Madri demonstra também um grande fracasso “cultural” do capitalismo, que quis manter as populações europeias em uma permanente minoria de idade alimentando só de fome: de bens, de imagens, de intensidades puras. Assustados ou corrompidos, as crianças podiam deixar de votar sem perigo de que seu voto mantivesse nenhuma relação real com a democracia. Por isso, na Tunísia e em Madri, os jovens pedem precisamente democracia; e por isso, na Tunísia e em Madri, compreenderam certamente que a democracia está ligada a essa coisa que Kant situava de modo taxativo fora dos mercados: a dignidade.
É impressionante – impressionante, sim – ouvir gritar estes jovens apartidários, sem muita formação ideológica ou diretamente “ideolofóbicos”, a palavra “revolução”, como na Kasbah da Tunísia. São pacíficos, disciplinados, ordenados, solidários, mas querem mudar Tudo. Querem mudar o regime, como na Tunísia: monopólio bipartidário das instituições, corrupção, degradação do setor público, manipulação midiática, impunidade dos responsáveis pela crise. Como na Kasbah da Tunísia, todos os partidos institucionais, também os da esquerda, foram vistos pegos no contrapé ou empurrados para fora do jogo.

Os jovens de Sol (e de outras cidades espanholas) não representam nenhuma força política nem se sentem representados por nenhuma força política. Mas o erro – claramente instrumentalizado pelos que se sentem ameaçados pelo estalo – é pensar que nos encontramos ante um rechaço, e não ante uma reivindicação, da política.

À luz de experiências históricas precedentes poderíamos concluir que o desprestígio das instituições e da classe dirigente franqueia o passo às soluções populistas ou demagógicas ou à irrupção de um “líder forte” cuja vontade desate magicamente todos os nós e resolva milagrosamente todos os problemas. É o fascismo clássico. Mas o fascismo clássico, cuja sobra já se colocava no horizonte, é bem o que estes jovens vieram impedir e denunciar. O populismo e a demagogia já estão nos governando; os “líderes fortes” são os que dominam os partidos e tratam de impor suas adesões fiduciárias, puramente emocionais, às crianças eternas nas quais quiseram nos converter.

Estamos em plena campanha eleitoral e os espanhois passeiam entre chamadas publicitárias dos candidatos. Há alguma dúvida? “Por que você diz que no Japão não há democracia?”, perguntava-lhes ao novelista Kenzaburo Oé. “Pelo sorriso do primeiro ministro”.

Os conspiradores, os violadores, os pedófilos, os caudilhos sorriem precisamente assim. Nos roubaram até a pureza dos sorrisos.
A Kasbah da Tunísia, como a Puerta del Sol, rebelava-se justamente, em nome da democracia, contra toda classe de liderança caudilhista. Havia ali, como há aqui, uma afirmação ingênua de democracia pura, clássica, quase grega. O historiador Claudio Eliano conta a anedota de um candidato ateniense que descobriu um camponês escrevendo seu nome nas listas dos que deveriam ser condenados ao ostracismo. “Mas você não me conhece”, queixou-se o oligarca. “Precisamente por isso”, respondeu o camponês, “para que não chegue a ser conhecido”.

Na Kasbah da Tunísia era muito poderosa esta suscetibilidade frente a todo o conhecido; ninguém que tivesse saído na televisão, ninguém a quem os manifestantes reconhecessem, era bem-vindo à praça. Eram os desconhecidos os que estavam autorizados para falar e fazer propostas; eram os desconhecidos os que tinham a autoridade que o mercado – e seu gêmeo político, o eleitoreiro – acumula, ao contrário, nas caras famosas. Mas acaba que os desconhecidos somos nós; os desconhecidos são os “qualquer” aos que esses candidatos sorridentes pedem o voto para os excluir logo dos centros de decisão.

Na Kasbah da Tunísia, como na Puerta del Sol de Madri, há uma tentativa de democratizar a vida pública devolvendo a soberania aos desconhecidos. Ninguém pode negar os riscos nem os limites desta aposta, mas ninguém pode tampouco negar sem fraude que esta “revolução contra os conhecidos” constitui precisamente uma denúncia do populismo mercantil e da demagogia eleitoreira, os dois cortes centrais das instituições políticas do capitalismo.
Os jovens da Kasbah de Madri, das Kasbahs de toda Espanha, querem democracia real, pois sabem que dela depende seu futuro e de toda a humanidade; ainda não sabem que essa democracia, como nos recorda Carlos Fernández Liria, é o que nós chamamos sempre de comunismo. Terão que descobri-lo a seu modo.

Nós, os mais velhos, o que vimos descobrindo desde cinco meses atrás, no mundo árabe e agora na Europa, é que “os nossos” – assim os chama Julio Anguita – não são como nós. No desejo de ser punk, a extraordinária novela de Belén Gopegui, a adolescente Martina, exemplar vivo desta nova classe social construída nas arestas dos mercados, reclama a seu pai: “você não foi um bom exemplo”. Não demos, não, um bom exemplo aos jovens e, apesar disso, quando desde a esquerda desprezávamos só um pouco menos do que os despreza Botín ou a Warner, quando acreditávamos definitivamente formatadas todas as subjetividades em um horizonte blindado, são eles os que se levantaram contra a “saciedade de doces” para reclamar uma “revolução” democrática. Martina está em Puerta del Sol e pode ser que também fracasse, como fracassou seu pai. Mas nenhum cinquentão de direita (nem de esquerda) virá dizer-lhe que sem luta não se consegue nada neste mundo.

A segunda década do século XXI anuncia um futuro terrível, incerto, talvez apocalíptico, mas nos deparamos já com algumas surpresas que deveriam nos rejuvenescer.
Uma coisa é certa, se tudo vai mal como dizemos, seguramente haverá resistência.
Outra é que o que verdadeiramente une é o poder; e a Puerta del Sol, aconteça o que acontecer, já tem poder.
E outra é que todas as análises, por agudas e meticulosas que sejam, deixam fora um resíduo que acabará desmentindo-as.
Não haverá uma revolução na Espanha, ao menos neste momento. Mas uma surpresa, um milagre, uma tormenta, uma consciência nas trevas, um gesto de dignidade na apatia, um ato de coragem no consentimento, uma afirmação antipublicitária da juventude, um grito coletivo de democracia na Europa, já não é um pouco revolução?

Tudo começou muitas vezes nos últimos 2.000 anos. E quando já só esperávamos finais, eis que aqui em muitos sítios, os mais inesperados, há gente nova empenhada em começar de novo.
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[1] Em árabe, cidadela, fortaleza, cidade murada. Mais em http://en.wikipedia.org/wiki/Kasbah.