sábado, agosto 23, 2008

A classe média encontra Getúlio




Wanderley Guilherme dos Santos

Se um dos já mitológicos torneiros mecânicos do ABC paulista, com formação escolar profissionalizante, recebesse no ano 2000 dez vezes mais do que recebia em 1980, teria, muito provavelmente, progredido na escala estatística da renda, continuando a ser, todavia, um torneiro mecânico de escolaridade profissionalizante na estratificação social. Seu filho, se também torneiro mecânico, com escolarização profissional, obteria seu primeiro emprego com o salário que custara ao pai 20 anos de trabalho, mas ingressaria na mesma posição na mesma escala da estratificação social. Mudanças nas classes de renda, ainda quando dramáticas, não equivalem automaticamente a mobilidade social.


Os estudiosos exigem, ademais, progresso no nível educacional e substituição do trabalho anterior por ocupação mais nobre. E existem analistas duros que só reconhecem mudanças na estratificação social quando à subida de um corresponde a descida de alguém do escalão superior. Por isso, transformações na estratificação social são fenômenos de longo prazo, que se medem, sobretudo, entre sucessivas gerações, estabilizadas as transformações depois de intermitentes oscilações nos níveis de renda dos diversos estratos, mas sempre acompanhados de aperfeiçoamento educacional e maior qualificação ocupacional. As notícias brasileiras são alvissareiras, mas de outra natureza.

Não é pouca coisa revelar que a história recente do país conseguiu retirar dezenas de milhões de pessoas do limbo social da indigência e da pobreza. Ao mesmo tempo, no atual universo expansionista brasileiro, também cresceu o número de ricos. Pouco provável, portanto, que tenha havido significativa mobilidade social no sentido de enorme taxa de substituição de pessoas, e remota a possibilidade de que, em tão curto período de tempo, a escala de estratificação exiba sensíveis alterações. Algumas exceções individualizadas à parte, o perfil da estratificação social brasileira permanece o mesmo.

A convergência entre dois documentos de objetivos distintos - o comunicado da presidência do Ipea, "Pobreza e Riqueza no Brasil Metropolitano", preparado pela assessoria técnica, com a colaboração de Fabio Vaz, Ricardo L. C. Amorim e Rafael Ribas, e o elaborado pela equipe do Centro de Políticas Sociais, da FGV, "A Nova Classe Média", sob coordenação de Marcelo Neri - sustentam o diagnóstico de que nos últimos seis a sete anos a migração de pessoas de classes de renda inferiores para classes de renda superiores alcançou taxas de considerável magnitude. Examinadas com microscópio, o documento da FGV identifica, inclusive, padrões "chineses" de crescimento da renda em algumas regiões e certos estratos de renda. Ambos os documentos registram, igualmente, o crescimento da renda e do número de pessoas situadas no topo da escala de ganhos.


Isso significa que a redução do número de pobres e miseráveis não se deu em virtude de forte redistribuição da pizza em favor dos mais carentes, mas resultou basicamente do inchaço da pizza, ou seja, teve como condição de possibilidade um razoável ritmo de crescimento econômico. De fato, o vulto da migração entre classes de renda só seria possível, na ausência do crescimento do bolo, mediante violenta subtração dos bem situados em benefício dos estratos inferiores, e é difícil supor que algo semelhante se dê sem intensa instabilidade política.

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É relevante o fato de que acréscimos nas rendas do trabalho privado foram superiores aos obtidos por via pública

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O documento do Ipea, ademais de registrar as diferentes taxas de alteração na renda de carentes e de regiões metropolitanas, explora o trajeto do grupo de altas rendas e também uma hipotética distribuição dos ganhos em produtividade industrial entre proprietários do capital e trabalhadores. Tentativamente, o estudo sugere que o aumento na produtividade da economia não esteja sendo compartilhado equitativamente entre o capital e o "fator" trabalho.

O estudo "A Nova Classe Média" é bem mais ambicioso e conduzido de forma bastante minuciosa. Duas contribuições me atraíram em particular. Depois de mensurar os ganhos de todas as classes de renda, no período 2002/2008, inclusive no interior de cada região metropolitana, a pesquisa revela que os acréscimos nas rendas do trabalho privado, isto é, não auferidos através de alocação pública - por exemplo, bolsa família -, foram superiores, no período, aos acréscimos obtidos por via pública. Em síntese, no meritório resgate de grande parte da população pobre, as políticas sociais do governo contaram com a colaboração de acentuada expansão do trabalho formalizado. Importante achado, a recomendar que os futuros estudos sobre mobilidade de renda ou redução da pobreza atentem para outras variáveis, além das canônicas, na apreensão do que ocorre ao nível das pessoas.

Um aspecto interessantíssimo é a ponderação de que a "formalização das relações do trabalho", a carteira assinada, teria passado a ser uma dimensão caracterizadora da "nova classe média", fazendo parte, inclusive, de seus sonhos de consumo. Ora, a introdução da "carteira de trabalho" ocorreu no ano de 1932, sob o governo de Getúlio Vargas, e então considerada como uma política social de caráter revolucionário. Com ela se estabeleceu um dos marcos institucionais destinados a retirar as relações de trabalho entre patrões e operários das delegacias de polícia. Tratava-se, à época, de violenta intervenção estatal na ordem do mercado, e a carteira, como até hoje, precisava ser registrada no Ministério do Trabalho.


No documento deveria constar a ocupação do trabalhador, aspecto que associava a política das relações entre patrões e empregados à política das relações entre os sindicatos como órgãos de direito público e o Estado. Só as "ocupações" reconhecidas pelo Estado dispunham de um sindicato e, pela mobilização deste, ficavam os cidadãos registrados com a garantia de que lhes seriam assegurados os direitos embutidos na carteira. A carteira de trabalho era a certidão de batismo da cidadania, e quem não a possuía, por não ter ocupação "reconhecida", estava destituído dos direitos econômicos e sociais que o governo de Getúlio Vargas ia criando.

Havendo começado como principal evidência de um ciclo de políticas sociais, consubstanciadas na eficaz inovação varguista que foi a "cidadania regulada", registro como avanço civilizatório o fato de que a carteira de trabalho tenha deixado de ser reconhecida como política social, e sim como uma espécie de direito natural. E que a classe média a tenha como objeto de consumo não deixa de ser uma reparação histórica ao ódio que grande parte dessa classe média sempre devotou a Getulio.

Está comprovada, creio que de maneira irrespondível, a ascensão de enorme contingente de brasileiros à estatística classe C de renda. Lá se encontraram com os históricos estatísticos C, habitantes com créditos de residência acumulados há décadas. Digamos que a nova classe média de renda é mais promíscua do que virginal. Ganhou a sociedade brasileira em pluralismo e, certamente, em padrões de comportamento a serem ainda tornados públicos. Eleitoralmente, todavia, sempre esteve onde está. Mas essa é outra história.

Wanderley Guilherme dos Santos, membro da Academia Brasileira de Ciências.


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